sábado, 16 de outubro de 2010

À volta da Roupa Velha e do Giro Sol 2009

Da roupa velha há muito pouco a dizer. Uma breve pesquisa no google devolve um monte de entradas que referem esta preparação como um aproveitamento das sobras do Bacalhau da Consoada. Com mais ou menos ingredientes, mais ou menos pirotecnia (forno incluido), parece um prato condenado a ser deglutido no dia de Natal, a servir de amparo a um qualquer delicioso assado. Mas na verdade este fantástico aproveitamento de restos de comida não terá um valor intrínseco que justifique uma preparação de raíz? Para mim, tem! É notável a diferença entre o "bacalhau cozido com todos" e a "roupa velha" ou farrapo velho, ou o que se lhe quiser chamar. Na macieza aveludada da batata, na integração do sabor do alho no azeite, no delicado sabor dos fios e lascas de bacalhau, na voluptuosidade dos verdes...

Deitei água num tacho, juntei batatas descascadas, couves e nabos (folhas); deixei que os legumes estivessem quase cozidos e juntei bacalhau demolhado. Deixei escalfar o bacalhau, desliguei o lume e escorri a água. Noutro tacho deitei um fundo de bom azeite, uns dentes de alho esmagados e picados e juntei as batatas partidas em pedaços, os verdes e o bacalhau lascado depois de retiradas a pele e as espinhas. Deixei em lume muito brando a harmonizar sabores depois de virar tudo com uma colher de pau. Temperei com sal marinho, voltei a envolver a mistura, desliguei o lume e deixei o tacho tapado por uns minutos antes de servir. E servi, com umas azeitonas, apenas.

Nesta preparação há dois factores a ter em conta: a qualidade do azeite e brandura do lume; a roupa velha deve apenas fervilhar, nunca ferver, por forma a manter intacto o sabor do azeite crú. Quanto melhor o azeite, melhor o resultado final. Aqui usei um azeite artesanal produzido perto de Lamego por um amigo e colega que é excelente.             


Esta roupa velha foi feita para provar um vinho que se me afigura muito especial, um vinho da Região dos Vinhos Verdes que é bem capaz de ser uma espécie de Batuta para muitos dos vinhos aí produzidos (sem contar com os Alvarinhos, porque esses jogam noutro campeonato), o Giro Sol Loureiro 2009. Um vinho feito por um dos Douro Boys, Dirk Niepoort, a partir de uvas da casta Loureiro duma vinha localizada em Ponte de Lima. Fresco, frutado, com bela acidez, pouco alcoólico, mineral, será o paradigma do que se espera de um vinho da região dos Vinhos Verdes. Muito bom nesta edição da colheita de 2009, é um belo vinho que de negativo, apenas se lhe pode apontar o preço (€ 7,90 na Garrafeira Tio Pepe). 

Não é um vinho de terroir que queira mostrar o potencial de uma vinha, de uma localização. É um vinho fresco e mineral, um vinho leve, muito levemente gordo, pouco alcoólico mas intenso e espontâneo. É um grito de alerta para toda uma região, uma forma de afirmação do potencial do Vinho Verde para fazer vinhos leves, frescos, com pouco grau. Aquilo que o mundo inteiro deseja e que a nova gastronomia anseia e procura! Um Vinho Verde estimulante.  *

2 comentários:

  1. Ora aqui está um exemplo claro de como uma simples questão de perspetiva pode alterar tudo.
    Apesar de eu ser, em geral, adepto de fazer pratos "de aproveitamento", de raiz, como faço com a Sopa Seca, nunca me ocorreu fazer a Roupa Velha sem ser no almoço de 25 de dezembro, com os propositados "restos" da consoada.
    Mas claro que não é esta a diferença de perspetiva em relação a esta proposta que, confesso, encontro pela primeira vez e me agrada sobremaneira. A questão magna que esta receita aqui levanta é a da temperatura de confeção. Eu sempre encarei a Roupa Velha como um prato cuja baser gorda eram alhos fritos em azeite bem quente, mesmo bem dourados, e o prato a continuar depois numa tónica de fritura e lume máximo.
    Esta abordagem suave e quase de "confit" a valorizar o azeite é uma tentação irresistível e radical.
    Só não será o meu almoço de domingo porque já tenho os chícharos de molho para aquelas postas de bacalhau, mas não tardará.

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  2. Não gosto muito de te contrariar (lol!), mas este prato maravilhoso de bacalhau mão tem nada de roupa velha, poderias quanto muito chamá-lo de roupa nova a estrear...
    Acho sempre graça (por ignorância, claro) aos adjectivos que usas para os vinhos. Este é «levemente gordo, pouco alcoólico mas intenso e espontâneo.» Podias estar a falar de uma pessoa, né?
    Beijinhos.

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