quarta-feira, 20 de junho de 2012

Papos de Anjo de Mirandela

Cumpre-se hoje a octagésima quinta trilogia, comigo e com o Luís a seguir o tema proposto pela Ana: doces conventuais


Para esta trilogia escolhi um doce transmontano dos Catrinos Descalços, monges oriundos de Espanha e que se instalaram em Mirandela por volta do ano de 1715. Sabe-se que eram monges da tradição do eremitismo primário, contudo tinham algumas actividades de grupo, como a pastorícia de subsistência, a agricultura de apanha e a festa da alheira. 
O seu mentor da altura, Pedro Feliciano, era descendente de Santo Antão do Deserto. Figura marcante da época, nasceu no Brasil e sabe-se que tinha percorrido o mundo na juventude, tendo aderido à Catra (ordem dos Catrinos) por volta de 1680, instalando-se a poucos quilómetros de Sevilha. Aos quarenta anos abandona o seu eremitério na Andaluzia e instala-se em Vilar de Maçada (há notícias da fundação de um eremitério já em 1696). 
Da vida de recolhimento, depressa passa a uma vida de comunhão com o povo, enquanto vai mantendo laços com outros eremitas da Catra que chama a si. Foram chegando, primeiro de Espanha, mas mais tarde de toda a europa do sul: França, Itália, Grécia e até da Albânia (é famoso Frei Albattus de Korçë que viria a casar com uma filha bastarda de dom Pedro II). 
No final da década de 20 do século XVIII já tinham abandonado os ideais do eremitismo e tinham-se constituído numa comunidade. Terão começado a edificar o seu convento por volta de 1737 (já depois da morte de Pedro Feliciano), quando lhes foi aprazado um terreno no termo da Vila de Mirandela (a chamada Horta da Coutada, parte da Coutada Real instituída em 1645 e que desde o primeiro quartel do século XVIII se encontrava em grande parte arrendada, contra a determinação do Rei). 
Em 1783 mudam-se para a Vila, onde permanecem até 1817. Sabe-se que em 1796 seriam 17 religiosos, 5 leigos, 2 donatos e 3 moços (da demarcação da província de trás-os-montes, feita pelo juíz Columbano Pinto Ribeiro de Castro). 
E é da transição do século XVIII para o século XIX que surge a história destes doces. O Abade à data era Júlio Morais Sarmento (do morgadio de Santa Comba) que, ao que consta, se tinha tomado de amores por uma senhora casada, dona Teresa Peçanha. E os encontros secretos eram marcados com os doces já na altura famosos, os papos de anjo de Mirandela. Quando dom Júlio queria ver a sua amada, mandava um dos moços com uma cestinha destes doces feitos com calda de açúcar, ovos e um doce (normalmente eram de abóbora, dumas abóboras de Lamas de Orelhão que eram as melhores da região, naquela altura e famosas na feira de dona Chama, que se realizava no dia 5 de cada mês). A resposta ao apelo do abade vinha também na forma de doce. De maçã quando a senhora podia comparecer no dia, de marmelada quando só podia no dia seguinte e de geleia quando o marido da senhora descobriu o arranjinho. É por isso que ainda hoje se considera de mau agoiro a inclusão de doce de maçã, marmelada ou geleia e é apenas "permitida"  a inclusão do doce de abóbora, como se pode constatar n' A Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, conforme gravura inclusa:



Depois da descoberta da ligação do dom Júlio com a dona Teresa pelo marido desta, dom Júlio viu-se degolado e atirado ao poço do Toural, recém-construído. O abade seguinte, dom Rodrigo Pimentel, terá proibido os papos de anjo e demais rebaldarias no convento. Em 1817, a ordem abandona o convento, que é entregue a Boaventura da Soledade, freire da Ordem da Trindade, tendo este doce sido esquecido e mais tarde re-apropriado pelo povo. Hoje não integra nenhuma das listas oficiais dos doces conventuais, mas apenas porque esta história não era conhecida.    


e para doze papos de anjo*, precisamos de:

125 g de açúcar
1 colher de sopa de doce de fruta (chila fica muito bem)
2 ovos e duas gemas
1 colher de café (rasa) de canela moída

Leva-se o açúcar ao lume num tacho com um pouco de água até fazer ponto de espadana (117º C). Adiciona-se o doce e deixa-se ferver. Retira-se do lume, deixa-se arrefecer um pouco e juntam-se os ovos batidos. Incorpora-se a canela. Num tabuleiro de queques, deitam-se forminhas de papel e a mistura e leva-se a forno moderado (cerca de 180º C) até dourarem. Quando arrefecerem, desenformam-se e polvilham-se com açúcar em pó.   


* a receita apresentada é a referida na CTP, com algumas adaptações.
naturalmente a história é ficcionada - fonte histórica aqui 


1 comentário:

  1. Se os papos são assim maravilhosos, que se poderá esperar dos anjos, eles próprios?
    Uns gulosos, nós 3, é a conclusão deliciosa que se tira desta tri.
    Beijinhos.

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